sábado, 18 de dezembro de 2010

Espírito de Natal

Estava o Senhor Teotónio, que era rico, muito gordo e grande fumador de charutos, a carregar o carro com os presentes que passara a manhã a comprar para os filhos, para os sobrinhos e para as muitas pessoas com quem fazia negócios, quando se aproximou dele um homem pobre, idoso e magro, que prontamente obteve dele esta resposta: — Comigo não perca tempo porque não tenho dinheiro trocado, nem alimento falsos mendigos. — Mas eu não lhe pedi nada — respondeu o homem idoso serenamente, com um sorriso que desarmou o Senhor Teotónio e a sua bazófia de novo-rico. — Então se não me quer pedir nada, por que motivo está tão perto de mim enquanto eu carrego o meu carro? — perguntou o Senhor Teotónio entre duas baforadas de charuto que fizeram o homem idoso e magro tossir convulsivamente. — Estou aqui, meu caro senhor — respondeu ele, já refeito da tosse — para tentar perceber o que as pessoas dão umas às outras no Natal. — Com que então — concluiu ironicamente o Senhor Teotónio, grande construtor civil com interesses de norte a sul do País — temos aqui um observador! Deve ser, certamente, de uma dessas organizações internacionais que nós pagamos com o nosso dinheiro e que não sabemos bem para que servem. — Está muito enganado. Mas já agora responda à minha pergunta: o que é que as pessoas dão umas às outras no Natal? — insistiu o homem pobre, idoso e magro. — Bem, se quer mesmo saber, eu digo-lhe. Quem tem posses como eu pode comprar uma loja inteira, deixando toda a gente feliz, a começar nos comerciantes e a acabar nas pessoas que vão receber os presentes. Quem é pobre como você fica a assistir. Percebeu a diferença? O homem magro e idoso reflectiu uns instantes sobre a resposta seca e sarcástica do Senhor Teotónio e depois respondeu-lhe com uma nova pergunta: — Então e o espírito do Natal? — O que vem a ser isso do espírito do Natal? — quis saber, cheio de curiosidade, o Senhor Teotónio. — O espírito do Natal — respondeu o homem idoso e magro — é aquilo que nos vai na alma nesta altura do ano e que está muito para além dos presentes que damos. Para muitas pessoas, o melhor presente pode ser um telefonema, uma carícia ou um telefonema quando se está só. — Era só o que me faltava agora — desabafou, enfastiado, o Senhor Teotónio, enquanto arrumava os últimos presentes na mala do automóvel — ter agora um filósofo, ainda por cima vagabundo, para aqui a debitar sentenças. O homem magro e idoso afastou-se do carro, mostrando que não queria esmolas nem qualquer outra coisa que lhe pudesse ser dada pelo Senhor Teotónio, e encaminhou-se para um grupo de crianças que o esperavam. Quando o Senhor Teotónio passou por eles no carro, ouviu uma voz de criança a dizer: — Vamos, Espírito do Natal, porque hoje ainda temos muito que fazer. Dizendo isto, o grupo ergueu-se no ar a esvoaçar com destino incerto, largando um pó luminoso enquanto ganhava altura no céu cinzento de Dezembro.
(JB)
José Jorge Letria
Texto adaptado

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